Todos os dias são iguais. De dia levo uma vida agitada: trabalho de terno, um elegante é claro. Recebo várias ligações importantes e para a grande maioria mando a secretária dizer que não estou disponível. Faço viagens longas a negócios e para isso, tenho residência fixa em alguns países do mundo. Ganho bem. Faço tudo com pressa... Perdi o senso de humor e ganhei o senso 'dos negócios'.
Moro com minha mãe. Tenho animais de estimação... dois gatos. Antes de chegar em casa, costumo passar no supermercado. Mamãe gosta que eu compre as frutas do dia ou legumes para fazer sua sopa. Sou bom filho. Fico em casa somente o tempo necessário de fazer um pouco de companhia a ela, estou sempre cuidando dela e ouvindo o que ela tem a dizer ... é uma mulher muito sozinha, mas gosta de falar, de ser ouvida. Gosto de ser sua platéia. Ela hoje só tem a mim.
Tomo banho e para relaxar um pouco saio sempre por volta das 21h. Vou sempre a este mesmo bar, no centro. Pego um trem para chegar até lá... demoro 35 minutos. Quero distrair...
Enfim, isso é o que eu costumo dizer. Perto das 22h, sou irreconhecivel.
Chego antes de todos, para ter tempo de me arrumar. Gosto de entrar sozinho. E naquela sala cheia de luzes, fico sentado no bar... é meu primeiro whisky, tenho uma porção de coisas a esquecer. Uma mulher morena senta ao meu lado e pergunta se posso lhe pagar um 'drink' e eu respondo... não. Todas elas levantam-se do bar chateadas por eu me negar a oferecer uma bebida.
Não é que eu não seja cavalheiro... mas eu não as suporto. São interesseiras. Enganam.
Não há espaço para mulheres na minha vida.
De qualquer jeito, mesmo que eu oferecesse o tal 'drink', não demorariam muito a perceber que não tenho interesse algum. Não tenho nada a oferecer. Sou um homem muito dedicado à minha própria vida e questões.
Levanto do bar e caminho diretamente em direção ao camarim. Lá está ela.
Ela sim é fiel e me espera sempre no mesmo horário... e agora são quase 23 horas. Ela está ali, deitada no sofá... tem tanto brilho, parece sorrir para mim e sussurar no meu ouvido a sua solidão, dependência. A saudade que tinha de mim...
Com cuidado, eu a coloco sobre minhas pernas grossas... meu terno elegante não há de se amassar. E a esta altura, já não me importo. Eu a aperto entre meus braços... cheiro... também sinto sua falta. Penso nela o tempo todo durante meu dias agitados. Não vejo a hora de estar lá, inteiro para ela.
Há barulho lá fora... ouço passos. Levanto para trancar a porta e então começo a acelerar as coisas. Procuro um estojo, quando sou interrompido... batem na porta.
- Querida, está tudo bem?
- Sim - ela responde.
A pessoa, intrometida, vai embora... ouço seus passos se afastando do meu camarim. Já estou a sós novamente. Preciso ser rápido... todas as oites é tudo tão rápido! Exceto pelo trajeto de trem, é a parte mais difícil...quando me despeço.
Mas onde eu estava? Ah! Sim... procurava por um estojo.
Sento-me diante do espelho e repito como quem tenta se convencer de algo (todas as noites), que sou um artista e sou bom no que faço.
Uma vez maquiado, ainda me sinto eu mesmo... falta o cabelo (uma peruca loira belissima) e ela, que continua ali no sofá: minha roupa de estréia. E eu estréio todas as noites... todos o dias são iguais, é verdade. Mas as noites, são a cada vez, como se fossem a primeira!
Mais uma vez interrompido... batem na porta para avisar que tenho cinco minutos. A contagem regressiva começa... meu coração parece estar na boca!
Lembro-me de mamãe... faço uma oração para que ela esteja dormindo em paz. Destranco a porta.
Subo no palco, há uma espécie de cortina que mostra apenas minha sombra. E ao som da música, ela aparece...uma verdadeira diva. O show consiste num streep-tease. A sala está escura e diante de mim consigo enxergar alguns olhares perplexos e outros admirados...talvez desacreditados.
Minha roupa, tão cheia de brilho... uma verdadeira robe de soirée, muito elegante, um vestido longo, vermelho, de frente única.
Era o vestido de mamãe. Ela costumava usar em sua juventude quando precisou trabalhar em um cabaret, cantando... para ajudar nas despesas de casa.
Seu pai era um homem muito duro... tenho poucas recordações dele. Mas ainda guardo na memória algumas histórias que ouvia quando menino. Ele gostava de mostrar quantas despesas ele tinha por causa de caprichos de suas filhas.
Mamãe cantava neste cabaret até que seu pai descobriu o que mais ela fazia por lá...
(e ele... o que fazia? há questões na vida que é melhor não cutucar).
Saber e conhecer essa mulher batalhadora que foi minha mãe e voltar para casa, encontrar apenas lembranças...? fotografias envelhecidas... Precisei estar com ela mais perto do que isso. Não suportei.
Ao sair do palco, ouço os aplausos... e faço novamente minha oração. Dessa vez peço para que ela tenha sentido orgulho da memória que tenho dela e digo, tentando fortemente me convencer...
"é pra você".
de Lisa ELKAIM
sábado, 13 de junho de 2009
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